domingo, 18 de setembro de 2011

Campeonato Nacional de Escrita Criativa - 9ª jornada

O que cozinharia para o seu inimigo?

Órfão. Por causa dele fiquei dolorosamente, órfão. Os teus olhos, pai, eram um espelho onde escorregavam imagens da minha infância. A segunda-feira em que me levaste pela primeira vez à escola, a sexta-feira em que me ensinaste a conduzir, o sábado em que me viste sair no meu novo carro, rumo ao baile de finalistas, acompanhado por uma rapariga.
«Não batas, coração, por favor!». Ele era o meu chefe, a única sensação que este inútil órgão devia sentir era respeito. Mas era paixão, e eu sabia-o. A minha vida rastejou até aos pés, quando a sua mão tocou na minha…
E agora o relógio não pára! A minha existência está em contagem decrescente. Por culpa daquele homem, a quem se entregou, a mim, outro homem. E agora?! Agora a minha irrealidade desfaz-se, o nevoeiro trespassa-me a alma, esta desmorona-se ansiosa por perecer.
Não tenho ninguém, porque o tinha a ele. Não o beijei num jardim, porque vos tinha a vocês, mundo. Não me amei a mim próprio, porque te amo a ti, pai. E só por ti te escrevo esta carta, enquanto cozinho esta carne, tóxica.
Nunca te deixaria assistir ao último espectáculo a que ele me obrigou a entrar. Na derradeira cena em que a traição exalta o público. Mas esta peça traz ao palco também a morte: sida.
Sida pecaminosa, sida pérfida! Não te preocupes pai, não vais carregar esse fardo.
Ele está aqui, à minha frente, mas já não é homem. A sua masculinidade ferve agora, numa panela. As borbulhas provocadas pela ebulição da água humanizada libertam e purificam este pedaço de matéria virulenta. E, de repente, o mundo é justo.
Já não ouço gritos, pai. A sua dor carnal foi espezinhada pelo sofrimento espiritual: cheira-lhe a morte. E vai morrer, sim. Contudo, antes terá de comê-lo. Irá provar do seu próprio pecado. Mastigará o seu próprio veneno. Esmagará a sua culpa, digerida nas suas entranhas!
Tenho de ir. A refeição está quase pronta, apenas falta uma pitada de sal. Há sangue na carpete, tenho medo que ele morra antes de comer. Quando receber esta carta, não venha sozinho. Deixe a polícia entrar. O corpo dele estará na sala, sentado. O meu, preso ao candeeiro do quarto, a olhar para a janela, para o mundo. A voar, finalmente, livre.
Não veja esse retrato. Recorde-me como a criança que chorou por deixar cair o gelado no seu colo.

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