terça-feira, 27 de setembro de 2011

Campeonato Nacional de Escrita Criativa 10º Jornada

Escreva sobre a opção mais fácil que teve de tomar até hoje.

Cheira a terra molhada, mas não choveu. O relvado, vivo, dá o seu ar de graça e ergue-se, majestoso. Esta relva possui algo que a maioria dos humanos daria a própria vida para obter: a fama. É vista em todo o planeta, e cada exemplar levanta a cabeça, imponente, consciente da sua responsabilidade.
Uma criança senta-se numa cadeira de plástico, ansiosa. Abre ao máximo os seus olhos castanho-esverdeados, tudo é novo. O brilho que eles emanam é superior ao solar, transmite energia inesgotável, de um sentimento que começa a crescer.
Exalta-se o encarnado, sumptuoso, vivo, atraente. As pessoas cochicham num nervoso miudinho. Outras bradam a plenos pulmões: é o seu orgulho, vaidoso.
Sente, criancinha, sente. A tua vida deixar-te-á nauseada com tamanhas voltas: amigos sem o serem, inimigos hipócritas, guerras perdidas, batalhas ganhas, ódios discípulos do amor, trabalho árduo desdenhado, preguiça engrandecida. Vais sentir o chão a rodar, a vida a cair, a cegueira mundial. Vais ter medo do afecto adulterado, da mentira, do desgosto. Mas não deste carinho, pequenita.
Milhares de pessoas gritam em uníssono e desconfias que a melodia é audível na tua longínqua terra natal. Há guardas agitados, atentos, cobrindo com o mirar esse mar de gente. Um pássaro sobrevoa toda aquela catedral. Tudo é gracioso, grandioso, glorioso. E tu sentes-te… em casa.
É a tua família que se levanta em uníssono, numa barulheira infernal. Assustada, segues o percurso do seu olhar, perscrutas esse acontecimento magistral. Há homens a pisar a relva, que se verga em vénias de respeito.
E tu explodes e compreendes algo que só muito mais tarde vais alcançar novamente: a verdadeira paixão! Berra, criancinha, berra. Mostra ao Universo a tua vontade. Dá pulos, porque assim não consegues ver nada. Isso, põe-te em cima da cadeira. Lá estão eles, a correr. Não correm pela liberdade, nem contra o tempo, mas atrás de uma bola.
Há decisões que se alimentam da própria indecisão. Já outras são capazes de deixar a marca eterna no molde da nossa vida. Já a decisão desta menina foi tão fácil, que nem se lembra de a ter tomado.
Hoje sabe que já caíram lágrimas. De tristeza e de alegria. Sabe que trouxe desgostos e revolta. Mas dêem as cambalhotas que a vida der, será eternamente: benfiquista!
Porque nenhum momento se iguala àquele em que os meus olhos, de criança como os daquele dia, compõem a palavra golo.

domingo, 18 de setembro de 2011

Campeonato Nacional de Escrita Criativa - 9ª jornada

O que cozinharia para o seu inimigo?

Órfão. Por causa dele fiquei dolorosamente, órfão. Os teus olhos, pai, eram um espelho onde escorregavam imagens da minha infância. A segunda-feira em que me levaste pela primeira vez à escola, a sexta-feira em que me ensinaste a conduzir, o sábado em que me viste sair no meu novo carro, rumo ao baile de finalistas, acompanhado por uma rapariga.
«Não batas, coração, por favor!». Ele era o meu chefe, a única sensação que este inútil órgão devia sentir era respeito. Mas era paixão, e eu sabia-o. A minha vida rastejou até aos pés, quando a sua mão tocou na minha…
E agora o relógio não pára! A minha existência está em contagem decrescente. Por culpa daquele homem, a quem se entregou, a mim, outro homem. E agora?! Agora a minha irrealidade desfaz-se, o nevoeiro trespassa-me a alma, esta desmorona-se ansiosa por perecer.
Não tenho ninguém, porque o tinha a ele. Não o beijei num jardim, porque vos tinha a vocês, mundo. Não me amei a mim próprio, porque te amo a ti, pai. E só por ti te escrevo esta carta, enquanto cozinho esta carne, tóxica.
Nunca te deixaria assistir ao último espectáculo a que ele me obrigou a entrar. Na derradeira cena em que a traição exalta o público. Mas esta peça traz ao palco também a morte: sida.
Sida pecaminosa, sida pérfida! Não te preocupes pai, não vais carregar esse fardo.
Ele está aqui, à minha frente, mas já não é homem. A sua masculinidade ferve agora, numa panela. As borbulhas provocadas pela ebulição da água humanizada libertam e purificam este pedaço de matéria virulenta. E, de repente, o mundo é justo.
Já não ouço gritos, pai. A sua dor carnal foi espezinhada pelo sofrimento espiritual: cheira-lhe a morte. E vai morrer, sim. Contudo, antes terá de comê-lo. Irá provar do seu próprio pecado. Mastigará o seu próprio veneno. Esmagará a sua culpa, digerida nas suas entranhas!
Tenho de ir. A refeição está quase pronta, apenas falta uma pitada de sal. Há sangue na carpete, tenho medo que ele morra antes de comer. Quando receber esta carta, não venha sozinho. Deixe a polícia entrar. O corpo dele estará na sala, sentado. O meu, preso ao candeeiro do quarto, a olhar para a janela, para o mundo. A voar, finalmente, livre.
Não veja esse retrato. Recorde-me como a criança que chorou por deixar cair o gelado no seu colo.

domingo, 11 de setembro de 2011

Campeonato Nacional de Escrita Criativa - 8ª jornada

Como seria o sítio ideal para viver?

As memórias estavam lá, a dormitar. Tinham sido rejeitadas, a dona não permitia que o seu passado emergisse. Porém, há momentos em que o silêncio se torna ensurdecedor, levando-a ao encontro daquilo a que foge a cada singular minuto: recordar.
Abriu a janela. Olhou para os peões, a atravessar a rua. Minuciou uma mulher, comum. Comum, porque nascera ali. Reparou que o encarnado do batom era visível àquela distância. Imaginou o seu rosto: maquilhado, belo, livre.
Passou a mão pelo braço, numa tentativa de se reconfortar a si própria. Sentiu-as! Estremeceu. Era apenas a sua pele, irregular… A profundidade de cada corte era infinita na sua dor. Retirar-se-ia algum dia?!
Desabaram chuviscos no interior dos seus olhos. Empurrou as recordações com toda a sua força. Mas estas irão respirar até ao seu próprio último suspiro.
«Mãe, quero um pénis!», dissera numa manhã confusa, quando se apercebera que o seu irmão tinha vindo ao mundo com mais direitos. Observava durante horas a sua vagina, limpa e pura. Um órgão muito mais agradável para a nossa visão do que aquele de que os meninos se serviam. Observava aquela culpada: a sua vagina! A resposta à sua inquietação, aquela bofetada seca, fora a primeira da sua vida.
Que humanidade possuem estes humanos que racionam a liberdade através dos seus órgãos sexuais? A ira corroía mortalmente a sua alma a cada nova ferida que se rasgava na sua carne. Chagas desenhadas por aquele que deveria ser a fonte de carinho e compreensão. Por aquele que tinha o dever de lhe limpar carinhosamente as lágrimas e não despontá-las. Por aquele que deveria ter sido, em primeiro e lógico lugar, seu escolhido.
A mulher elegante chegara agora ao outro lado da passadeira. Tal como um dia ela chegara a um aeroporto, num outro planeta. As suas habitantes corriam apressadas para o seu emprego, para ir buscar os filhos à escola, para encontrar um lugar no estacionamento. Extraordinariamente, apressavam-se a entrar em tribunais, livres e justos. Ali, sozinha, sentiu-se pela primeira vez acompanhada… pela independência!
Podia gritar! Podia clamar os seis direitos ao mundo. Podia até escrever a sua história… Perdeu de vista a mulher em que reparava. Entrara num supermercado. Sozinha. Um acto tão simples como irrealizável na sua outra vida. Até aterrar aqui.
Saiu do parapeito. As esfregonas e vassouras sorriram-lhe, emprestando-lhe os seus corpos. Abraçou-as: como este novo (nosso) mundo é ideal para viver.

sábado, 3 de setembro de 2011

Campeonato Nacional de Escrita Criativa - 7ª jornada

Escolher dez palavras do dicionário. Anotá-las. Depois escrever novas definições para ela.

Álcool – Substância medicamentosa com fins terapêuticos; essência fantasiosa que faz com que dois humanos, do mesmo género ou de sexo distinto, unam os lábios no interior de um compartimento usualmente quente, epilepticamente iluminado, habitualmente designado de discoteca.
Alquimia – Experiências sentimentais mágicas produzidas pelos príncipes encantados que alteram as ondas cerebrais das suas princesas.
Esperança – Sustento que alimenta a irrealidade, tornando-a próxima e palpável; aquecedor que reinicia a actividade eléctrica cardíaca; acto ou efeito de fazer com que outro sujeito esboce um sorriso com os seus lábios.
Família – Grupo de indivíduos que partilham a mesma descendência ou o mesmo tipo de sangue; conjunto de seres adquiridos logo à nascença, imunes a qualquer tipo de escolha; indivíduos que estão sempre presentes quando eles precisam; pessoas que ironizam a tua vida e qualquer tipo de ajuda traz segundas intenções; criaturas, semelhantes a insectos, que te sugam o sangue e a paciência. Excepções encontradas neste tipo de fulanos possuem uma outra interpretação: amigos.
Liberdade – Estado da consciência humana real, na maioria das vezes meramente falacioso. Esta condição está sujeita a inúmeros factores sobre os quais não temos controlo. O estado pleno de liberdade é unicamente verdadeiro na nossa mente. A liberdade dos pensamentos jamais será assassinada.
Lógico – Situações em que é efectivamente possível roubar o Estado Soberano do seu país e tirar proveito da situação; vontade de ter um carro com um valor económico superior ao sujeito que vive na casa ao lado ou num apartamento do mesmo prédio; obsequiar os eleitores com um fragmento de carne de porco, previamente salgada e curada, para que obtenham um maior discernimento acerca dos programas eleitorais do seu partido político.
Medo – Vontade de abraçar alguém sentimentalmente próximo; sorrir ao se aperceber que ambos os braços envolvem esse indivíduo.
Mesa – Objecto utilizado pelos Humanos criativamente fortalecidos, necessário quando um indivíduo empurra grosseiramente outro da sua espécie para cima da mesa, explorando os seus potenciais na actividade sexual, sendo a imaginação o limite.
Opressão – Acto ou efeito que leva a voar; ímpeto para o nascer do Sol; sorriso de uma criança.
Sossego – Capacidade de imunidade perante a crise global; acto que leva a que uma individualidade continue com uma respiração regular após ter ligado o seu televisor e através do sentido da audição acompanhar a actividade económica actual.