domingo, 11 de setembro de 2011

Campeonato Nacional de Escrita Criativa - 8ª jornada

Como seria o sítio ideal para viver?

As memórias estavam lá, a dormitar. Tinham sido rejeitadas, a dona não permitia que o seu passado emergisse. Porém, há momentos em que o silêncio se torna ensurdecedor, levando-a ao encontro daquilo a que foge a cada singular minuto: recordar.
Abriu a janela. Olhou para os peões, a atravessar a rua. Minuciou uma mulher, comum. Comum, porque nascera ali. Reparou que o encarnado do batom era visível àquela distância. Imaginou o seu rosto: maquilhado, belo, livre.
Passou a mão pelo braço, numa tentativa de se reconfortar a si própria. Sentiu-as! Estremeceu. Era apenas a sua pele, irregular… A profundidade de cada corte era infinita na sua dor. Retirar-se-ia algum dia?!
Desabaram chuviscos no interior dos seus olhos. Empurrou as recordações com toda a sua força. Mas estas irão respirar até ao seu próprio último suspiro.
«Mãe, quero um pénis!», dissera numa manhã confusa, quando se apercebera que o seu irmão tinha vindo ao mundo com mais direitos. Observava durante horas a sua vagina, limpa e pura. Um órgão muito mais agradável para a nossa visão do que aquele de que os meninos se serviam. Observava aquela culpada: a sua vagina! A resposta à sua inquietação, aquela bofetada seca, fora a primeira da sua vida.
Que humanidade possuem estes humanos que racionam a liberdade através dos seus órgãos sexuais? A ira corroía mortalmente a sua alma a cada nova ferida que se rasgava na sua carne. Chagas desenhadas por aquele que deveria ser a fonte de carinho e compreensão. Por aquele que tinha o dever de lhe limpar carinhosamente as lágrimas e não despontá-las. Por aquele que deveria ter sido, em primeiro e lógico lugar, seu escolhido.
A mulher elegante chegara agora ao outro lado da passadeira. Tal como um dia ela chegara a um aeroporto, num outro planeta. As suas habitantes corriam apressadas para o seu emprego, para ir buscar os filhos à escola, para encontrar um lugar no estacionamento. Extraordinariamente, apressavam-se a entrar em tribunais, livres e justos. Ali, sozinha, sentiu-se pela primeira vez acompanhada… pela independência!
Podia gritar! Podia clamar os seis direitos ao mundo. Podia até escrever a sua história… Perdeu de vista a mulher em que reparava. Entrara num supermercado. Sozinha. Um acto tão simples como irrealizável na sua outra vida. Até aterrar aqui.
Saiu do parapeito. As esfregonas e vassouras sorriram-lhe, emprestando-lhe os seus corpos. Abraçou-as: como este novo (nosso) mundo é ideal para viver.

Sem comentários:

Enviar um comentário